quinta-feira, 2 de abril de 2009

Conto - Efêmero





EFÊMERO


As borboletas são insetos da ordem Lepidóptera. Como todas as Lepidópteras, as borboletas são conhecidas por seu estranho ciclo de vida. Este consta, após a eclosão do ovo, em uma fase larval na forma de uma voraz lagarta, um estado de crisálida completamente inerte, e uma formidável metamorfose ao final do processo que resulta na forma adulta, dotada de estupendas asas policromáticas.

Quem dera pudesse vê-la mais uma vez. Uma única vez. Uma única mísera vez. É o que bastaria. Depois disso o fausto de sua existência, aquele peso cotidiano do respirar, poderia se afrouxar dando espaço para um tranqüilo repouso sem fim.

Tirou os sapatos. Precisava fazer xixi. E o que pode haver de mais prazeroso na vida de um quase homem feito que retirar os sapatos e poder urinar no vaso sanitário de uma casa alugada à custa do próprio esforço? Só mais alguns meses agora. O cheiro ácido e febril do líquido invadiu-lhe lentamente as narinas e ele sentiu uma tremenda sensação de alívio.

Depois, subitamente, um sentimento de vazio e esgotamento apossou-lhe a mente. Apenas alguns metros até a cama desarrumada. Apenas alguns metros. Saiu sem abotoar as calças. Sem levantar o zíper. Sem dar a descarga. Sem lavar as mãos. Sem escovar os dentes.

Estava ficando velho? Ou talvez ainda fosse jovem demais para aquilo tudo. Não. Mas se ao menos pudesse vê-la mais uma vez, sim, mais uma vez... Então as coisas poderiam enfim reclamar seu sentido?

Uma única vez. Uma única vez. Aquela única vez. Não fora? Ouve outras. Não contava. Aquela vez. Aliás, era completamente trivial. Tanto tempo atrás... Por que ainda se lembrava? Não sabia. Não sabia ao certo. Seis anos? E isso há mais de dezessete.

Ovos de borboleta consistem de uma endurecida camada exterior, alinhada com uma fina capa de cera que impede que o ovo de secar antes que a larva tenha o pleno tempo de se desenvolver. Ovos de borboleta e mariposa variam de tamanho entre as diferentes espécies, mas são todos de formato oval ou esférico. Eles são afixados às folhas através de uma cola especial, que endurece rapidamente. Enquanto ela endurece se contrai deformando o formato do ovo. A fase de ovo dura algumas poucas semanas para a maioria das borboletas, mas ovos colocados próximos ao fim das estações quentes, especialmente em regiões temperadas, costumam ficar em suspenso, chocando apenas na primavera.

A umidade invadia o ar enquanto um enxame tempestuoso de aleluias se digladiava com a luz dos postes elétricos, confundindo-se com as estrelas na abóbada celeste e a lua cheia entrecortada pelas nuvens negras.

Fazia muito calor. O odor vívido das fezes bovinas se fazia onipresente naquela rua de terra que passava como uma ponte de terra seca sobre o brejo.

Do além das cercas uma inconstante orquestra cacofônica composta pelo gorjear dos pássaros, o coaxar das rãs, o estridular das cigarras, o zunzunar das asas dos pernilongos, o piscar dos vaga-lumes, e o barulho dos vermes remexendo sob a terra.

Ele a apertava com toda força. Aquele pequeno e quente mamífero de pele morena. Seus cabelos negros impregnados daquele aroma de lama. O peito dela se contraia e ele podia sentir seu suor e seu bafo quente. Podia sentir os seus corações batendo juntos em um uníssono completo, numa amálgama perfeita, numa aceleração crescente e que parecia irrefreável.

Não era preciso palavras. Estavam há horas metidos naquela muda telepatia, naquela sincronia majestosa. Tudo se resumia a respirar e deixar que as artérias bombeassem generosamente o sangue, enquanto ele secretamente se desmanchava num espasmo ébrio de prazer.

- Aí, assim machuca!

Ela resolvera ousadamente quebrar o pacto daquela mudez. Ele se ajeitou e a olhou afogueado no rosto, enquanto nervosamente apertava-lhe a mão e afundava os pés na terra vermelha encharcada. Não tardaria e os gritos da mãe o obrigariam a voltar para casa. Por que precisava ir?

- Toma.

Observou o desenho do sorriso em seu rosto quando Isabel, aquele era seu nome, retirou da velha e surrada mochila ao seu canto um recipiente de vidro contendo em seu interior um estranho inseto azul- metálico, e que permanecia inerte. A borboleta. O troféu diurno de suas caçadas juntos naquela tarde.

O bicho permaneceu lá parado, inerte, desempenhando seu papel dócil de cativo, mero símbolo, mera lembrança. Um singelo presente.

- Isabel vem comer! O Jantar está pronto.

Não era a voz de sua mãe, mas do pai da menina. Ela saltou como se acometida de um surto epiléptico e correu em direção a casa. Sem se despedir.

Na manhã seguinte a mãe o acordou para tomar o café. Mas ele não se levantou. Preferiu confiar seus prantos ao vão entre o colchão e o muro frio e branco. Jamais se esqueceria de que mais cedo naquela manhã, ouvira ecoar aqueles sinistros ruídos de motor.

Deixou que a borboleta fugisse.

As larvas de borboleta, ou lagartas como são mais conhecidas, consomem folhas de plantas e passam praticamente todo o seu tempo em busca de comida. A maioria das lagartas são herbívoras, embora algumas espécies se alimentem de insetos. Algumas larvas vivem em simbiose com as formigas, se comunicando com estas através de vibrações e sinais químicos. As formigas auxiliam na proteção da larva, enquanto a larva por sua vez lhes fornece uma secreção açucarada.

Nunca mais vira aqueles turistas do Rio. Como era mesmo o nome da filha deles? Uma hora acabava se lembrando.

Tantas memórias naquela casa de fazenda, e ele mal podia acreditar que alguns anos antes havia abandonado tudo por aquele sonho louco de ir viver na metrópole.

Fora com a cara e a coragem. Não conseguiu realizar aqueles sonhos pueris, suas hiperbólicas esperanças adolescentes. E com toda certeza havia passado por poucas e boas. Mas pelo menos conseguirá concluir seus estudos.

Agora estava de volta. Quem diria? Tocando os negócios do pai na loja, mais os afazeres da propriedade que haviam caído sob sua responsabilidade, e dificilmente lhe restava tempo para pensar em mais nada.

Havia comprado às terras do vizinho, e aquelas terras alagadiças das fronteiras poderiam ser usadas para o plantio do arroz. Sempre havia problemas é claro, outro dia mesmo havia discutido feio com um dos empregados. Não tinha a mesma paciência do velho.

Não saia mais aos fins de semana pela cidade, e desconfiava intimamente que seus concidadãos o achassem um tanto arrogante.

Não podia reclamar. Pelo menos comia três, ou até mesmo quatro vezes ao dia e se havia acostumado com o sentimento de liberdade que se tem ao tomar uma chuveirada fria pela manhã.

E no meio do caminho havia encontrado Fernanda. Estavam casados já há dois anos, e embora discutissem de vez em quando, na maioria das vezes não saberia o que teria feito sem a presença extra dela ali ao seu flanco na cama de casal. Sua respiração ondulando os lençóis.

Tentou lembrar do nome. Qual era mesmo? Uma hora lembrava. Estava cansado.

Quando a larva amadurece completamente, um processo hormonal se inicia. Nesse ponto a larva para de se alimentar e começa a vagar em uma jornada na busca por um local adequado para a formação do casulo, muitas vezes escolhendo a parte debaixo de uma folha. A larva se transforma em um casulo (ou crisálida), se ancorando firmemente há um substrato. Ela perde toda a capacidade de movimento, embora alguma espécies possam mover rapidamente os segmentos abdominais ou produzir sons para espantar predadores em potencial.

Berrou com força que acreditava não ter mais. A terceira vez aquela semana! Quem eles acreditavam ser para vir até ali, seu estabelecimento e julgar qualquer coisa?

Aqueles canos enferrujados estavam ali desde antes de seu avô e nunca haviam produzido nenhum incômodo que não fosse o barulho de água corrente; isso quando alguém por ventura puxava a descarga.

Outros tempos teria pensado em mandar tudo à merda e se mudar daquela cidade. Agora era tarde com quase quarenta e Nanda grávida mais uma vez.

Varreu os fiscais da cabeça, aqueles malditos bostas, e se recolheu à sombra do minúsculo escritório arejado pelo ventilador.

O Luís que trata-se de fechar a loja, afinal não lhe pagava o salário pontualmente para que ele ficasse com aquele olhar estarrecido contemplando os sacos de ração, como se dali fosse brotar a segunda vinda de Jesus Cristo.

Acariciou a Máquina. Se Nanda soubesse... Mas ela não entendia nada daquelas coisas. Minimizou o programa que usava para fazer as contas e monitorar o estoque.

Na tela do Computador surgiu uma interface azul-berinjela e alguns pop-ups de sites adultos, com imagens animadas de mulheres nuas se masturbando. Sozinho na sala digitava como se possesso por algum espírito de terreiro.

A Máquina era mágica. Mefística. Prometia-lhe as portas do céu, os prazeres do inferno. Um ser mitológico, como uma fada ou um gênio, só que ligada diretamente aos recônditos mais escondidos de seu desejo. E ele sempre soube o que desejava.

Ainda lembrava da noite ocioso em que vagando por aqueles site de relacionamentos pessoais se deparou quase que por coincidência com o perfil daquele velho conhecido do seu pai. Do Rio.

Já havia procurado antes. A Máquina lhe pedia um nome. E só. Mas infelizmente ele o havia apagado completamente de seu cérebro. Só lembrou efetivamente quando o leu ao lado de uma pequena foto, na seção de depoimentos.

Estava mais velha é claro. As rugas haviam carcomido o seu rosto de anjo, os resíduos de tintura entristeciam o cabelo. Mas eram os mesmos olhos, o mesmo sorriso: Isabel.

Desde então ela, a Máquina, se tornara sua confidente, seu canal para com o passado. Não foi difícil conseguir lhe falar. Havia afinal os softwares de mensagens instantâneas.

Edu diz:
Olá. Estava esperando você.

Is@, “touching the sky” diz:
Oiiii!

Is@, “touching the sky” diz:
Então. Quando veeeeeem?

Edu diz:
Está complicado... quero muito mas...

Is@, “touching the sky” diz:
Ahhhhhhhhh. Vem logo

Edu diz:
Mês que vem. No feriado.

Is@, “touching the sky” diz:
=/

Is@, “touching the sky” diz:
Mas vem sim, vai conhecer todo mundo aqui.

Edu diz:
Outro dia estava lembrando.

Is@, “touching the sky” diz:
Do q?

Edu diz:
Da gente criança.

Is@, “touching the sky” diz:
Puxaaaaaaaa, e mesmo né?rsrs

Edu diz:
Lembra? Da Borboleta?

Is@, “touching the sky” diz:
HAN?!

Edu diz:
Daquela Borboleta que você me deu. A azul?

Is@, “touching the sky” diz:
AAAAA. Lóoogicooo.

Is@, “touching the sky” diz:
Hey. Vou sair aqui.

Is@, “touching the sky” diz:
Entrei só pra ver uma coisa. Vou comer.

Is@, “touching the sky” diz:
Beijooos!!!

Edu diz:
Beijos. Se cuida.

X.A seguinte mensagem não pode ser entregue.
Edu diz:
Beijos. Se cuida.



A Máquina lhe prometia aquela proximidade distante, inalcançável. Ficou ali fitando o monitor enquanto mensagens sonoras mal-vindas pipocavam insistentemente pelos auto- falantes. Por um momento se sentiu o último homem da terra, derrotado. Fora ultrajado pela Máquina.

Esperou certo de que voltaria. Mais tarde ela voltaria. Em todo caso havia sempre a esperança do mês que vêm. O feriado. Teria que arrumar uma desculpa. Qualquer desculpa. Mas e o bêbe? Não nasceria no outro mês?

Precisava ir. Precisava ir vê-la. Uma desculpa qualquer. Mas as idéias naquele exato momento o haviam abandonado completamente.

O estágio adulto, sexualmente maduro, da borboleta é chamado imago. Borboletas adultas possuem seis pernas, duas antenas, dois olhos compostos, duas antenas e uma tromba, além de quatro asas, cobertas por finas escamas. Contudo após emergir do estágio de crisálida uma borboleta não pode voar até conseguir liberar suas asas. Uma recém emergida borboleta precisa gastar tempo inflando suas asas com sangue e deixando suas asas secar, período no qual fica extremamente vulnerável a predadores. Borboletas levam em torno de uma hora para secar suas asas, chegando até três horas.

Quem dera pudesse vê-la mais uma vez. Uma única vez. Uma única mísera vez. É o que bastaria. E então poderia descansar. Quase setenta. A casa ficava vazia no domingo, mas dali a pouco enquanto ele repousava na cama vazia Nanda chegaria com o seu neto.

Domingo era assim, um vazio enorme, e os outros dias eclipsados por algumas rápidas passagens a loja onde o Dudinha assumira seu posto. Luís continuava lá, fitando os sacos de ração com o mesmo ar aparvalhado de sempre, só que agora levemente mais calvo.

Mal se mexia. O corpo doía, e o braço formigava. Isabel, Isabel. Devia ir vê-la. Mas já haviam passado tantos anos. Tantos anos. Ela nem se lembrava. Não queria dizer nada para ela. Aquela noite. O piscar dos vagalumes, o estridular das cigarras. Talvez não se lembrasse mais. Ou nunca dera a mínima.

Uma súbita pontada no peito. Uma dor aguda. Queria ser a Borboleta. Talvez a Máquina realizasse aquele seu último desejo. E se naquele dia em que a soltara, ela poderia depois de ter escapulido do vidro ter voado em direção a Ela?

Uma borboleta. Era uma Borboleta agora. Voava. Voava. Para onde? O Rio de Janeiro é claro. A Metrópole. Haveria de vê-la mais uma vez. Afinal a Máquina não lhe havia prometido? Só mais um pouco. Só mais alguns meses. Apenas alguns metros. Tanto tempo atrás...

Não havia vivido tanto tempo apenas para lembrar-se daquela única noite afinal?

O tempo de vida das borboletas varia de espécie para espécie. Também pode variar dentro de uma mesma espécie, dependendo da estação em que adulto emerge da crisálida. Adultos que nasceram depois do inverno costumam ter suas vidas expandidas, embora isso também se verifique naqueles que empreendem migrações. Algumas borboletas e mariposas vivem apenas alguns dias. Outras de seis a doze meses. As lepidópteras mais longevas permanecem inativas boa parte do tempo. O tempo de vida da maior parte das borboletas costuma estar no meio desses dois extremos.

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